Aspectos Históricos e Evolução Urbana
A colonização do Siará Grande começou num povoado chamado Arraial, que se situava às margens do Rio Jaguaribe e que surgiu em decorrência de sesmarias adquiridas pelo Capitão-mor Manuel de Abreu Soares.
A origem deste povoado está ligada ao aumento da indústria pastoril que se desenvolvia ao longo de todo o rio Jaguaribe. Com o tempo o lugar seria conhecido por Cruz das Almas, e, posteriormente, por São José do Porto dos Barcos.
O aparecimento das charqueadas seria determinante para a história dessa povoação, como o principal impulso para o seu progresso. O ano em que se instalaram as primeiras salgadeiras é desconhecido, sabe-se entretanto que datam de épocas anteriores a 1740 e que “no ano de 1714, devastadas as carnaubeiras e marizeiros, construíram os charqueadores, vindos de Pernambuco e da Bahia, uma capela de taipa com frente de tijolo e coberta de palha, sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário” .
Antes mesmo de ser elevada à categoria de vila, Aracati já tinha a hegemonia econômica da capitania. Isto foi conseqüência da relativa proximidade com Recife e Salvador, principais núcleos urbanos da época; e devido ao seu porto marítimo no qual era realizado intenso intercâmbio comercial marcado pela exportação das riquezas da capitania e pela importação de diversos objetos de luxo.
O desenvolvimento gerou um fluxo populacional em direção à Aracati; as pessoas ali se instalando passaram a desenvolver atividades comerciais, ligadas ao charque e também ao couro, sob várias formas e tipos, transformando em pouco tempo o humilde arraial em um centro dos mais procurados e populosos da capitania.
Em 1743, Aracati se destacava pelo progresso econômico e populacional. O grande número de pessoas, entretanto, acabava por gerar conflitos e insegurança, daí se fazendo necessário o requerimento neste ano de um juiz ordinário e um tabelião que pudessem legalmente impor a ordem ao lugar.
Em 1744, o Ouvidor Manoel José de Faria já fazia uma recomendação para que o povoado fosse elevado à vila, recomendação esta que seria reforçada pela Câmara do Aracati no ano seguinte.
Em 19 de Julho de 1747 uma carta comunica a resolução do rei em criar a vila de Santa Cruz do Aracati. Esta porém só viria a ser fundada efetivamente em 10 de Fevereiro de 1748. O local escolhido como marco inicial foi a Cruz das Almas por ser o mais alto, consequentemente estando livre das inundações do rio Jaguaribe. Segue-se aqui uma descrição desses autos de criação:
Autos da creação da villa que o muito alto e poderoso Senhor Dom João o quinto Rei de Portugal mandou novamente erigir neste lugar do Aracaty porto dos Barcos do rio Jagoaribe pello Doutor Manoel José de Faria ouvidor geral desta Comarca do Ciara Grande: Anno de nassimento de nosso Senhor Jesus Cristo de mil e setecentos e coarenta w oito annos aos des dias do mês de fevereiro do dito anno neste lugar do Aracaty porto dos Barcos do rio Jagoaribe em pouzadas do Doutor Manoel José de Faria ouvidor geral e corregedor da Comarqua honde eu escrivão de seo cargo ao diante nomeado fui vindo e sendo ahi pello dito Menistro me foi mandado autuar huma ordem de Sua Majestade pella qual determinava o dito Senhor fizesse erigir no Lugar asima declarado huma nova villa com todas as clauzulas e sirconstancias na mesma ordem declaradas e para constar a todo tempo a execução da mesma que he a que adiante se segue e as demarcassões tanto da praça ruas lugares para edificios publicos rosios e logradouros como título da mesma villa fiz este auto em que asinou e eu Verissimo Thomas Perera escrivam da ouvidoria que o escrevy. Manoel José de Faria.
E sendo em o mesmo dia mês e anno atras declarado foi o sobredito Ministro comigo escrivam ao sitio chamado Crus das Almas por ser o que se acha mais conveniente para se demarcar a praça da nova villa em rezão de ser o mais alto e livre de innundação do Rio Jagoaribe e afastado de la sua rabansseira o que paresseo bastante deicharse para huzo e serventia do mesmo Rio e sendo ahi chegado as cazas do Coronel Domingos Tavares mandoce fincar huma grande carnahuba pera do lugar em que esta se por se cordiar por rumos direitos o lugar que havia de servir de praça a mesma villa e depois de posto o dito marco mandou deitar o rumo da agulha de marcar e cordiando a lessueste com cincoenta e oito braças e meya no fim delas em pouca distancia de humas cazas que se disse herão de Dona Roza se mandou fincar outra carnahuba da qual virando o rumo ao sul sudueste se foi correndo a corda com sento e sinco braças no fim das quais se mandou levantar outra carnahuba donde seguindo rumo de alues-noroeste com otras sincoenta e oito braças e meya no fim delas se meteo outro Marco de carnahuba que fica…com o primeiro que se meteo junto as cazas do Coronel Domingos Tavares e desta sorte ficou fixada a prassa com figura cuadrangular, e seguindo o rumo de nornordeste que he o que faz face pela parte do rio e chegando ao meyo dele com sincoenta e duas braças e meya se botou o rumo de lessueste a buscar o meyo da praça demarcada com vinte e nove brassas e huma coarta honde se asignou o lugar do Pillourinho etc.”
“A 24 de Fevereiro levantou-se o Pelourinho, de tijolo barro e cal, tendo em sima no remate coatro brassos de ferro com suas argolas na ponta vindo a ter desde pedestal athe o remate vinte palmos, e a 26 foi demarcado o logar para a casa de camara e cadea, dando se lhes para isso quinze braças de terreno.”
Em 1781 existiam provavelmente umas cinco fábricas de beneficiamento de carne, por estes tempos a população fixa de Aracati era grande, mas a flutuante era bem maior. O saldo populacional de cerca de 2.000 pessoas em 1789 faz perceber claramente isto.
Inicialmente, com a instalação da Vila houve um decréscimo no desenvolvimento comercial, pois a partir de então os donos dos barcos tiveram que passar a obedecer às posturas criadas pelas autoridades locais, o que os fez buscar outras oficinas para negociar. Entretanto, logo Aracati se recuperaria e as relações comerciais seriam normalizadas.
A conformação espacial da vila de Aracati ia, então, estabelecendo-se, tendo a sua estrutura urbana e a sua arquitetura influência direta do Ciclo do Gado. Isto fica bastante evidente no traçado das ruas, que objetivava a melhor acessibilidade entre o Porto dos Barcos e as Oficinas. Exatamente por isso, as caixas das vias, adaptadas ao transporte dos animais , são, ainda hoje consideradas bastante largas para os padrões da maioria das cidades do sertão.
Um erro na delimitação do tamanho da vila do pequeno termo de meia légua quadrada gerou um descontentamento na população; entretanto, Aracati expandiu sua malha urbana alheia à discussão que girava em torno desse equívoco.
Em 1770 foi feito um contrato para a edificação da Casa da Câmara na rua do Comércio, no antigo trecho das Flores.
Verifica-se no livro de aforamento de terra da Vila de Aracati de 1775-1812 um pedido de demarcação das oficinas, currais e estaleiros que se localizavam nas ruas centrais da Vila. E no livro de registro de Escrituras de foros de Aracati, ano de 1765-1779, vê-se inúmeros pedidos de aforamentos de menores dimensões e em várias ruas.
As maiores oficinas ficavam na rua principal, a Santo Antônio. Com o crescimento da vila e o conseqüente aumento no número de edificações, a Câmara tentava ordenar da melhor maneira possível a expansão urbana, o que não consistia em tarefa fácil.
Em 1781 a Câmara da Vila de Aracati faz o requerimento de uma Audiência Geral, cuja pauta se referia à questão da rusticidade e má localização das oficinas que provocavam insatisfação na população. Entretanto, nada foi feito, a não ser a comprovação por escrito do fato.
Insatisfeitos com a falta de atitude que solucionasse a problemática, os vereadores e um grupo de republicanos requiseram uma nova Audiência Geral, na qual a discussão girou em torno de soluções que aliviassem os moradores dos incômodos decorrentes do abate em lugares centrais da Vila.
Chegado o final do século XVIII, a Vila do Aracati possuía uma população de aproximadamente “duas mil pessoas… Habitando trezentas casas (muitas delas sobrados), mais de setenta lojas de mercadorias…que arrecadavam quinhentos mil cruzados…”, e recebia melhoramentos que a metrópole só concedia aos mais ricos e adiantados.
Neste mesmo período aconteceram dois fatos: a capitania do Siará deixa de ser dependente da de Pernambuco e acontece uma expansão da cultura do algodão, conseqüência da Guerra da Secessão nos Estados Unidos que prejudicou totalmente a produção algodoeira daquele país, obrigado-o a sair do mercado internacional. Isto deixou um vácuo que foi preenchido pelo produto nordestino. Um terceiro fato veio se juntar a estes dois, as secas de 1777 a 1778 e 1790 a 1793 praticamente acabaram com o rebanho cearense e, assim, houve uma queda na produção da carne seca, que teve seu pólo de produção transferido para o sul do país.
O algodão surgiria então como a nova cultura dominante e no período compreendido entre o final do século XVIII e o início do XIX, lideraria o cenário da economia nordestina. A sua produção gerou lucros comparáveis aos obtidos com o açúcar e do couro.
Em 1779, foi construído em Aracati o edifício da Alfândega, responsável pela arrecadação dos impostos relativos ao algodão, que, por sua vez, a partir de 1805, já era comercializado diretamente com a Metrópole. Devido a esta movimentação comercial, Aracati viu seu quadro urbano evoluir enquanto o da maioria das outras vilas existentes permanecia inalterado, continuando, portanto, a ter a hegemonia econômica da capitania.
Até a década de 30 Aracati vai paulatinamente conquistando mais e mais o poder econômico e se destacando como a vila melhor estruturada da Província. Possuía a maior população e sobrados de sofisticada conformação. Entretanto, após este período diversos fatores contribuíriam para que Fortaleza assumisse a posição de maior centro urbano do Ceará .
Em 25 de outubro de 1842, pela Lei Provincial n 244, Aracati é elevada a condição de cidade. Nesta época ainda possuía a dominância do comércio e a maior população da Província.
Em 1901 Aracati era assim descrita por Antônio Bezerra: “a cidade consta de quatro ruas grandes, mal alinhadas, que se estendem aproximadamente de N.N.E. à S.S.O., a primeira próxima do rio, denominada Apollo, que teve antes os nomes da Parada e do Silvestre; a Segunda, a mais importante, do Comércio, outrora do Pelourinho, na sua primeira parte, das Flores, no centro e de S. Antônio no outro extremo; a terceira Direita e a Quarta do Rosário. Tem 16 menores, com intervalos mais ou menos desocupados, umas no quadro edificado, outras nos arredores que são chamadas de Paradinha, do Tamarindo, da Matriz, da Carnahuba, do Joaquim João, do Cortume, da Bella-Vista, do Velame, da Casqueira, da Ana Calisto, do Soares, do Cemitério, do Porto dos Barcos e da Cacimba do Povo. Cortando as ruas principais quase em direção L.S.E. a O.N.O., cruzam-se as travessas do Bonfim, dos Prazeres, do Encontro, das Flores, do Mercado Novo, da Cacimba, da Viação, da Matriz, do D. Luiz, da Parada, da Alfândega, da Botica, da Praias, do Triumpho, do Cano e outras a que não se deu ainda nome. São belas as praças do Pelourinho, da Ponte, antiga da Alfândega, da D. Luiz, da Matriz, do Mercado, Dos Prazeres, do Rosário e da Cruz das Almas. A cidade que apresenta magníficos prédios, entre os quais 82 sobrados de um ou dois andares, quase todos situados na rua do Comércio, onde se vê grande número de lojas e armazéns de fazenda e outros objetos de negócios. O edifício da Câmara Municipal, um dos mais importantes do Estado, que fica no lado ocidental da rua do Comércio com dez portas de frente no andar superior, a que dominam duas grandes torres. Entre os templos nota-se a Matriz, bella igreja, alta espaçosa, bem construída, tendo rico trabalho de gravura no altar-mor que resplende aos finos dourados efeito do gosto antigo. Sobre a frontaria montam torres, em uma das quais se acha um excelente relógio, presente que lhe fizera o Coronel Domingos Theofilo Alves Ribeiro, no ano de 1844, que com ele despendera 1: 500$000rs” . Refere-se também às igrejas: do Bom Jesus do Bonfim, situada à rua do Comércio; a de N.S. do Rosário dos Pretos, localizada na rua do Rosário e a de N.S. dos Prazeres, situada na mesma rua.
Como pólo de grande movimentação comercial e uma população que excedia a da capital, ou seja, como um lugar de destaque dentro da Província, Aracati possuía evoluídas concepções políticas e culturais, tendo inclusive muitos de seus filhos participado do movimento revolucionário de 1824, a Confederação do Equador; bem como da fundação do primeiro clube republicano do Ceará.
Tinha inúmeros jornais de cunho político e humanista que criticavam com bom humor e buscavam fazer da população pessoas esclarecidas, conscientes de seus direitos como cidadãos. Na música destacavam-se as bandas.
Em linhas gerais, Aracati teve sua história marcada por uma fase de intenso progresso, quando se destacava no cenário cearense e pelo seu porto se escoava o grosso do comércio internacional da capitania, depois província. Com o fim desse período, compreendido entre os anos quarenta do século XVIII e a década de trinta do século XIX, a cidade foi-se gradativamente estagnando, como decorrência das secas, das linhas de vapores para Fortaleza, da construção da Via Férrea de Baturité, do declínio da charque e do algodão, etc.
Em 1966 a base da economia do município era a agricultura. Eram explorados o algodão, a cana-de-açúcar, o coco-da-Bahia, a mandioca, bem como era feito o extrativismo da cera de carnaúba e do sal. Empresas de industrialização do caju, indústrias de palha de carnaúba e a produção artesanal de labirintos e rendas mantinham a economia de Aracati que estava longe de se comparar a da época das charqueadas.
Atualmente Aracati é um dos pólos turísticos do Estado e este provavelmente é o mais forte potencial para o seu desenvolvimento. Como centro histórico com grande acervo arquitetônico, ele pode receber estímulos que favoreçam a um turismo cultural, além daquele gerado por suas praias, seu clima ameno e seco e pela hospitalidade da sua população.
Fonte: LUCIENE VIERA LÔBO
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